A dura construção da base no futebol feminino

Apesar do impulso da CBF, categorias juvenis ainda lutam contra a falta de visibilidade e os poucos recursos

Por Giovanna Favero e Mariana Calheiros

Quinta-feira, dia 17 de outubro de 2019, às 15h, parece ser um dia comum nos arredores do Estádio do Pacaembu. Algumas barracas da feira ainda próximos ao estacionamento, um carro de polícia parado na calçada e o trânsito fluindo normalmente.

Ao fundo, é possível observar algumas poucas pessoas próximas à entrada do estádio, que parecem se dirigir para o Museu do Futebol. Porém, não dessa vez. Naquele momento, acontecia a final do Campeonato Brasileiro Feminino Sub-18, entre São Paulo e Internacional. Um evento que parece ter notoriedade por ser uma final de campeonato, mas, que por se tratar de futebol feminino de base, há  pouco apoio e baixa visibilidade. 

O futebol feminino no Brasil veio mais à tona no último ano por causa da repercussão da Copa do Mundo da França, que ocorreu em julho de 2019. Com isso, foi possível abrir os olhos para as grandes dificuldades encontradas na modalidade. Porém, se as equipes principais não possuem recursos, o apoio é ainda menor nas categorias de base.  

Copa do Mundo Feminina de 2015, no Canadá.

Dentro do Pacaembu, o pequeno público, de maioria mulheres e familiares das jogadoras em campo, se dissolve entre as imensas arquibancadas. Com entrada gratuita, as torcidas são dispostas de lados opostos, mas ao longo do jogo todos são redirecionados pelos policiais para as cadeiras cobertas, com sombra.

Bandeiras do São Paulo são colocadas por apenas quatro integrantes da torcida organizada, que, em meio a um silêncio cortante, começam a cantar músicas de apoio ao time. “Vamo apoiar as minas!” grita um deles, e aos poucos os torcedores começam a incentivar o time.

Após a derrota da seleção brasileira nas quartas de final do mundial, as jogadoras apontaram que o principal problema do futebol feminino no Brasil está nas categorias de base.

“Valorize! A gente pede tanto, pede apoio, mas a gente também precisa valorizar“ disse a atacante Marta em um discurso emocionante após o jogo. A falta de estrutura dos times e de campeonatos dificulta o desenvolvimento das garotas que sonham em ser grandes jogadoras de futebol profissional. 

Em 2019, a CBF criou a primeira competição de base feminina para começar a cobrir essa carência.

Rio de Janeiro – Seleção brasileira de futebol feminino disputa semifinal com a Suécia, no Maracanã. O Brasil perde nos pênaltis e vai disputar o bronze (Fernando Frazão/Agência Brasil)

O Brasileiro sub-18 começou em julho, com 24 clubes. Dentro de campo, no Pacaembu, os únicos homens eram os gandulas. As duas equipes estavam focadas e levavam o jogo a sério, sendo uma partida dura. Com a desvantagem de um gol pelo jogo de ida, o São Paulo partiu para cima no início, mas o Internacional foi o primeiro a marcar, aos 44 minutos do 1º tempo.

Uma das jogadoras em campo pelo tricolor paulista era a zagueira Lauren. Assim como várias garotas, ela começou a jogar bola bem pequena, brincando com os meninos na rua. Aos 8 anos, entrou na escolinha e sempre teve apoio da família. Lauren conta que a rotina é muito cansativa, com treinos todos os dias da semana e jogos aos sábados e domingos, mas segue a batalha para conquistar seus objetivos dentro do esporte.

A zagueira começou no Centro Olímpico e desde 2018 atua no São Paulo. Com apenas 15 anos, ela foi destaque pela Seleção Feminina Sub-17. “Estar na Seleção Brasileira é o sonho de todo mundo que joga, é onde todo mundo quer chegar. Foram dois anos de muito aprendizado, muita felicidade e muita realização que eu vou levar para o resto da minha vida”, afirmou a jogadora.

Lauren relata que muitas meninas desistem desse sonho por falta de apoio dos familiares, motivos emocionais e pelo dinheiro, porque não têm condições de bancar uma vida de atleta e, sem apoio dos clubes, não conseguem se manter. 

História contata pelo YouTube da CBF

Para a jogadora, as oportunidades surgem do trabalho desde as idades mais novas e, segundo ela, isso precisa avançar: “Como é que você vai formar jogadoras sem a base?”, questiona. “Não tem como, precisa ter mais apoio, mais visibilidade, mais campeonatos, esses que devem ter uma competitividade maior e com mais investimentos”. 

O incentivo no Brasil 

Ao final do jogo no Pacaembu, o Internacional consagrou-se o primeiro campeão do Brasileiro Sub-18 feminino, vencendo por 2×1 no placar agregado.

O colorado gaúcho é um dos poucos clubes que possuem um trabalho de preparação de base que ajuda a suprir a demanda de garotas que desejam jogar futebol profissionalmente. Junto ao Inter, estão apenas o Fluminense, no Rio de Janeiro e o Centro Olímpico, em São Paulo, que é um projeto em parceria com a prefeitura da capital.  

Há 10 anos, o Centro Olímpico foi o primeiro clube no Brasil que investiu em categorias exclusivamente femininas, e hoje conta até com o sub-9, que possui peneiras mensais.

Reformulado em 2010, pelo então supervisor Arthur Elias, atualmente técnico do Corinthians Feminino, a criação das categorias de base surgiu como uma necessidade de formar atletas para a categoria adulta do clube e para as seleções brasileira de base e principal. Nomes como Tamires, Debinha e Luana, que atuam hoje na seleção, iniciaram suas carreiras no clube.

Bia e Debinha atuando pela Selação Brasileira

O futebol do Centro Olímpico é exclusivamente feminino. Para eles, a modalidade na categoria masculina no Brasil já está saturada de espaços e clubes de alto rendimento, e por isso preferem investir num espaço de formação apenas para as mulheres.

“Nossa única relação com futebol masculino é quando participamos de campeonatos com meninos, uma vez que nas idades mais novas não há campeonatos femininos, então somos obrigados a participar de torneios masculinos” afirmam. E as meninas se saem muito bem: em 2016, o clube venceu a Copa Moleque Travesso, um campeonato tradicional de São Paulo, sendo o único time feminino na competição. Na decisão do título, Lauren, ainda no Centro Olímpico, foi eleita a melhor em campo. 

Após a obrigatoriedade dos 20 clubes do Campeonato Brasileiro masculino manterem um time de futebol feminino adulto e de base, o apoio começou a aumentar.

No caso do São Paulo, antes de montar a equipe principal, o clube começou a olhar para a formação das garotas e fez uma parceria com o Centro Olímpico para disputar competições de base.

Sub-17 do São Paulo Feminino

Em 2017, na disputa do primeiro Campeonato Paulista sub-17 criado pela FPF (Federação Paulista de Futebol), o Centro Olímpico entrou na competição com a equipe da categoria oficial e “emprestou” as jogadoras do sub-15 para o São Paulo, que acabou vencendo o campeonato, mesmo com a equipe mais jovem. Nos últimos dois anos, as equipes de base do futebol feminino do São Paulo conquistaram seis títulos, incluindo até mesmo a Libertadores sub-16. 

O futuro da base 

O Brasileiro Sub-18 criado pela CBF foi um grande avanço no apoio ao futebol de base feminino. Outra novidade trazida este ano foi a mudança nas comissões técnicas das seleções de base sub-17 e sub-20, sendo que ambas estavam sem técnico desde setembro de 2018. Simone Jatobá, ex-jogadora da seleção brasileira e de times como o Paraná Clube, SPFC e Lyon, foi o nome escolhido para comandar a seleção sub-17. 

Aos 12 anos, Simone entrou em seu primeiro time feminino e hoje analisa a experiência de começar sem o apoio da base: “Na minha época não existia categoria de base feminina, nem na seleção e nem nos times. As garotas mais novas que tinham capacidade treinavam já com o adulto” conta ela. Com 18 anos, a agora técnica entrou no São Paulo e foi convocada para as Olimpíadas no ano seguinte, em 2000.

Atuando no exterior pelo Lyon até 2010, para Simone, as diferenças do apoio ao futebol feminino são enormes. A visão das federações e dos clubes é outra, o apoio é maior com condições de treinamento completamente diferentes.

Seleção Francesa de futebol feminina

“O futebol feminino no Brasil não é visto como futebol de visibilidade. Isso impede a gente de crescer e evoluir porque aqui eles só focam no masculino, enquanto fora eles apoiam bastante as garotas” afirma ela. No exterior, a grande maioria dos clubes dão a mesma estrutura do masculino para o feminino treinar e os campeonatos são de longa duração.

As mudanças reais no Brasil começaram após o mundial feminino deste ano. Sobre as ações da CBF, Simone analisa que eles fizeram o que vários outros países também estão fazendo, dando oportunidade e abrindo portas para mulheres.

“A gente não tem que achar que o Brasil é o melhor em tudo, porque na verdade a gente ta ficando para trás. O que o presidente fez é o correto de acordo com a atualidade, mostrar que o futebol feminino tem qualidade dentro e fora de campo” afirma ela. Outro passo importante para essa nova fase foi a sua contratação como técnica.

Marta atuando pela Seleção Brasileira

Por ser atleta, o trabalho de Simone como técnica é um pouco diferente. Pela  experiência de ter jogado e conhecer a vida de jogadora, seu objetivo é colocar o que realmente é necessário para a base e focar na formação, corrigindo os erros e construindo uma evolução.

Para ela, o futebol feminino brasileiro nos próximos anos deve ser como do exterior: um futebol respeitado, com boas programações, profissionalismo e oportunidades. “Não é só a bola e a jogadora, em volta existe muito mais que faz com que o momento da jogadora e da bola dê certo. É preciso de tempo para que tudo seja colocado no seu lugar”, finaliza.

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